Pouco se fala nos impactos das políticas instauradas pela ditadura militar brasileira sobre os povos indígenas que vivem no país. Aproximações mal planejadas, escassez de recursos médicos e transferências súbitas são algumas das causas de mortes em massa entre 1964 e 1985. Algumas intervenções mais violentas, que também marcaram o período ditatorial para os indígenas, e que podem ser verificadas no Relatório Figueiredo (documento produzido pelo procurador Jader Figueiredo em 1967), foram as prisões em reformatórios militares – quadros de exploração que envolviam trabalho escravo, agressão e assédio. Assim, apesar de sabermos que a violência contra indígenas se origina muito antes desse período, a interferência em seu bem-estar foi insistente durante os anos de governo militar no Brasil. A ditadura militar foi conhecida pela abordagem da questão indígena com afirmações falsas, como as de que não existiam mais indígenas no país, que as regiões Norte e Nordeste precisavam ser ocupadas para estimular o progresso econômico, que os indígenas precisavam ser integrados à civilização e que, por isso, deveriam ser submetidos à tutela do governo. As estratégias adotadas pelos líderes do país incluíram o desmembramento de terras indígenas e incentivos fiscais para aqueles que as ocupassem – políticas explicadas cuidadosamente pelo jornalista Rubens Valente em seu livro Os fuzis e as Flechas, publicado em 2017. Pensando nisso, conduzi uma pesquisa sob a orientação da professora Cláudia Luiza Caimi, do Instituto de Letras, numa tentativa de analisar a perspectiva de uma vítima desse período e mensurar as consequências de seus traumas, nas dimensões individuais e coletivas, que aparecem em sua narrativa. Foi escolhido como escopo um dos documentos mais completos sobre esse tema, elaborado por um autor indígena – o livro A Queda do Céu, coproduzido pelo xamã yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert. Davi foi apenas um dos milhares de indígenas brasileiros a sofrer com doenças trazidas por brancos e com a falta de preparo médico para controlá-las. Suas experiências com o trauma e o luto foram precoces e, desde então, sucessivas. Na adolescência, trabalhou para a Funai e, mais tarde, prestou serviços como intérprete durante a construção da estrada Perimetral Norte, causa de inúmeros embates violentos entre trabalhadores e grupos indígenas. Como fruto desse contato com órgãos governamentais e com situações de ameaça e morte, Kopenawa pôde, gradualmente, desenvolver mais criticidade sobre os brancos. De início, já se pode perceber que sua narrativa está repleta de elementos da cosmologia yanomami. Suas explicações para os conflitos entre brancos e indígenas, que permeiam a história de seu povo, estão sempre ligadas à origem do mundo e aos espíritos que aqui habitam. Toda experiência traumática é simbolizada. Ao longo da análise, notou-se que esse é um dos traços do testemunho de Kopenawa que vai ao encontro dos estudos do professor e teórico Seligmann-Silva sobre o trauma na narrativa. Segundo ele, narrar o trauma é uma tentativa de expressar de forma sintética algo que extravasa os padrões do que é concebível, com o objetivo de libertar-se ou de atribuir significado ao que foi vivido, daí a utilização de elementos metafóricos e imaginativos durante a narração. No entanto, trabalhar com a dimensão individual não foi suficiente para cobrir o potencial das palavras de Kopenawa, já que grande parte do seu testemunho era composto por narrativas herdadas, ou seja, cuja origem estava no social. Seu sentimento de horror e raiva em relação aos brancos provinha de situações que não pertenciam exclusivamente à sua memória. O pesquisador Gilad Hirschberger chama esse fenômeno de “trauma coletivo” e se refere a respostas psicológicas que afetam toda uma sociedade, de forma que a tragédia fica representada na memória do grupo. A característica mais notável da memória coletiva do trauma está no fato de a tradição oral colaborar para a manutenção dessas lembranças por várias gerações. Por isso, elementos oriundos de conflitos com os brancos e símbolos de suas interações são incorporados às narrativas etiológicas e cosmológicas do povo Yanomami, recontadas por Davi. Por fim, mais do que lidar com experiências de morte, muitas vezes incompreensíveis, provocadas pelo oportunismo governamental e empresarial, e buscar a possibilidade da narrativa terapêutica, o sobrevivente do evento traumático lida com outras responsabilidades. Entre elas, lutar contra o sentimento de culpa por ter sobrevivido e agir contra o negacionismo e o silenciamento. Davi Kopenawa trabalhou com o que viveu, tornando-se membro de ONGs de proteção às terras indígenas e de associações indígenas – como União das Nações Indígenas (UNI), o Conselho Indígena de Roraima (CIR) – e fundando a Hutukara Associação Yanomami (2004), da qual é membro até hoje. É importante lembrar, também, que as narrativas das vítimas são imprescindíveis para que a memória de momentos históricos dolorosos como a ditadura seja preservada. O pacto etnográfico entre Davi Kopenawa e Bruce Albert e o fruto de sua cooperação, o livro A Queda do Céu, chamaram a atenção da mídia do mundo todo e permitiram que o ativismo político em prol dos indígenas no Brasil ganhasse mais visibilidade e apoio. Um testemunho de caráter tão complexo como esse tem potencial documental, literário e reivindicatório dos direitos indígenas e prova os danos psicológicos e culturais que o despotismo dos brancos tem causado. Por essa razão, é preciso que haja uma exploração mais ampla desse material no mundo acadêmico, e espero ter contribuído com esse objetivo por meio da pesquisa. (*) Camila Sauthier é aluna de graduação do curso de Licenciatura em Letras, na UFRGS, e bolsista de Iniciação Científica PIBIC CNPq, na linha de pesquisa de Teoria Literária.