Projeto de lei tramitava desde 2015, o Decreto n.º 11.150/2022 que regulamenta a Lei n.º 14.181 foi assinado em 1 de julho de 2021. Trata-se de um marco por incluir no Código de Defesa do Consumidor a prevenção e o tratamento do superendividamento, preenchendo parte da lacuna de disciplina na concessão do crédito apontada por autores como Cláudia Lima Marques e Joseane Suzart Lopes da Silva. No livro Superendividamento na vida das trabalhadoras e dos trabalhadores, junto de Rosângela da Silva Almeida, defino o superendividamento como a “[…] incapacidade de cumprir com as dívidas contratuadas, mesmo comprometendo a renda atual e futura”. Atualmente o artigo 54A do Código de Defesa do Consumidor define no parágrafo 1.º: “Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial“. O artigo 3.º do decreto já mencionado define esse mínimo existencial como 25% do salário mínimo vigente na publicação do decreto. Entre as dívidas parceladas, algumas não serão consideradas no comprometimento dos mínimos existenciais. Destaco aqui o crédito imobiliário e as dívidas decorrentes de operação de crédito consignado, este regido por lei específica. A expansão do crédito para a população brasileira iniciou nos anos 2000, sendo a ampliação das contas bancárias um de seus sinais. Aos poucos, os trabalhadores passaram a receber seus salários por conta corrente. Dados de 2012 apresentados por Carolina Rispoli Leal, em sua tese de 2016, apontavam que a concessão de crédito representava 50,7% do PIB. Em 2021, segundo o IPEA, atingia 54% do PIB. Em 2003, a Lei n.º 10.820 criou os empréstimos consignados. Em 3 de agosto de 2022, a Lei n.º 14.431 dispôs sobre o percentual máximo aplicado nos empréstimos consignados, sendo a margem de 40%. A mesma lei, no artigo 6.º, incluiu o benefício de prestação continuada e os programas de transferência de renda federais no rol de autorizados para descontos de empréstimos consignados, permitindo até 45% de desconto. Cabe destacar que o parágrafo único demarca o pagamento dos créditos como sendo responsabilidade “[…] direta e exclusiva do beneficiário, e a União não poderá ser responsabilizada, ainda que subsidiariamente, em qualquer hipótese”. Lembremos que o Auxílio Brasil, atual programa de transferência de renda federal, está temporariamente com o valor de 600 reais. Ao permitir a consignação, o benefício passa ao valor de 360 reais. Considerando-se que o atual valor se deu pelo reconhecimento de estado de emergência, via Emenda Constitucional 123/2022, a vigência é até o final do ano corrente. O questionamento posto é: como os beneficiários cumprirão com o pagamento após a diminuição do benefício? Ou, ainda: no caso de interrupção do benefício, qual será o resultado para a vida dessa população? – o decreto do Auxílio Brasil (10.852/2021) possibilita que a revisão de elegibilidade [elenco de critérios para participar do programa] seja realizada mensalmente. Diante do cenário, a hegemonia do capital financeiro “[…]torna-se cada vez mais presente, seja pelo fetiche à mercadoria, pela proteção social que é ofertada apenas no mercado, pelo status social buscado ou pela tentativa de atender às necessidades sociais básicas de existência”. O Estado fez a escolha deliberada de endividar a parcela da população mais vulnerável, que não possui renda de mais de 210 reais per capita – portanto, os que não dispõem de renda para a garantia das necessidades básicas. Cabe mencionar ainda que se trata de um público desinformado sobre o funcionamento do sistema de crédito. Uma pesquisa do Uol aponta que os empréstimos são de cinco vezes o valor mensal do benefício, e a taxa de juros em 24 parcelas chega a 98% ao ano. Essa taxa é muito superior à aplicada aos empréstimos consignados de trabalhadores do setor privado, que em média é de 2,61% ao mês – enquanto a dos beneficiários em foco é de 5,85%. Cabe debater a questão social nesse cenário de empobrecimento da população e exploração do capital financeiro. População cada vez mais necessitada de política de assistência social diante da falta de proteção da legislação trabalhista. A quem beneficia essa medida? Sabe-se a quem prejudica: aos mesmos que enfrentam os impactos da Emenda Constitucional 95, que sofrem com o desfinanciamento nas políticas sociais, o desmonte na rede de atendimentos e a ampliação da terceirização na prestação de serviços. (*) Letícia Maria Pereira é assistente social e mestranda do Programa de Pós-graduação de Política Social e Serviço Social da UFRGS.