Esse animal de origem divina, homenageado pelo próprio Homero, convive com o homem, partilhando de sua mesa e de seu alimento. Suas asas, delicadas como os tecidos indianos, tornam-se iridescentes sob o sol, lembrando as penas do pavão… O Elogio da mosca, de Luciano de Samósata, é uma demonstração de virtuosismo descritivo. O zelo naturalista do autor atrai, em certas passagens, um olhar sério para o objeto. Mas, naturalmente, é o domínio da ironia que confere interesse a esse pequeno divertimento. Parodiando os lugares-comuns do gênero encomiástico, compondo um delicado mosaico de referências literárias e mitológicas, ele evidencia o lado artificioso dos belos discursos e desafia um arraigado preconceito a favor da gravidade: o texto torna-se tão mais atraente quanto sabemos que a causa tem relevância nula. Segundo Vladimir Jankélévitch, o espírito da ironia é o espírito da distensão, possível apenas quando há um relaxamento da “urgência vital”. Como a arte, ela é um oásis em plena vida séria. Mas ela é também essencial ao processo da consciência, marcando a passagem da adesão crédula ao distanciamento, esse mínimo de ociosidade que permite uma análise não reverente das ideias e viabiliza o pensamento relacional. Ela é, assim, uma maneira de compreender. A ironia é também uma maneira de se comunicar… sem comunicar. Mas não seria toda expressão fiel apenas de maneira aproximativa? Ademais, nem toda a verdade deve ser dita de forma direta. Por pudor ou estratégia, o ironista opta por um gradualismo pedagógico. Enganando, ele oferece ao enganado os meios de se desenganar. Exercício da inteligência, a ironia não quer ser crida, mas compreendida. Opondo-se à bravata e às crenças, ela nos acostuma a um pensamento exploratório, indiferente, no limite, à própria causa. O elogio paradoxal, tal como praticado por Luciano, radicaliza a “ironia interrogante” de Sócrates, e Platão já nos mostrava seu personagem divertindo-se com essa forma discursiva, estabelecida na cultura grega desde o Elogio de Helena, de Górgias. Entre os latinos, ela se associa à declamatio, exercício praticado em aulas de oratória a partir de um tema fictício, recurso adotado por personagens de grande prestígio como Frontão, o mestre do imperador Marco Aurélio. A seu austero discípulo ele dedica, entre outros, um “Elogio da Negligência”. O renascimento recupera a ligação entre a declamatio e o ceticismo. Cornelius Agrippa, autor do De incertitudine et vanitate scientiarum atque artium declamatio invectiva (1527), lembra que ela “não julga, não dogmatiza, mas fala por vezes como jogo (ioco), por vezes seriamente (serio), às vezes com falsidade (false), às vezes com rigor (sauere); às vezes segundo o próprio pensamento, às vezes segundo o de outro; ela propõe verdades, falsidades, afirmações dúbias e aduz muitos argumentos sem valor. A mais importante declamatio renascentista é, certamente, o Elogio da Loucura (1509). Para a tradutora Elaine Sartorelli, ela comportaria, à maneira sofística, “uma recusa do dogmatismo e da presunção da certeza”, pois, abordando o tema de diferentes lados, possibilita ao autor argumentar pró e contra de forma descompromissada. No seu Prefácio, Erasmo questiona a injustiça de se conceder diversões a todos os setores da vida, exceto aos estudos, “sobretudo quando tais brincadeiras comportam elementos sérios e os temas lúdicos são tratados de tal modo que um leitor cujo olfato não esteja totalmente embotado possa extrair mais frutos dele do que dos tétricos e esplêndidos argumentos de alguns escritores”. Agrippa e Erasmo foram imitados em toda a Europa. Centenas de obras dessa natureza aparecem em coletâneas como o Amphitheatri Sapientiae Socraticae Ioco-Seriae (1619). Entre os britânicos, o elogio paradoxal converge de modo feliz com o ensaísmo. Um James Sanford, tradutor de Agrippa, escreveu A Mirrour of Madnes, A Paradoxe Maintayning Madnes to be most Excellent (1576). Em 1593, Antony Mundaye publica sua Defense of Contraires. Paradoxes against common opinion, debated in forme of declamations, que vem a ser a tradução de Paradossi: cioè sententie fuori del comun parere, opra non men dotta che piacevole, de Ortensio Lando (1543). No mesmo período, Edward Aggas traduz do francês uma Defense of Death, Sir Edward Dyer compõe um Praise of Nothing e Daniel Heinsius, um Praise of the Louse, abrindo caminho para os Paradoxes and Problems do sacerdote John Donne, e sobretudo para seu Biathanatos, a Declaration of that Paradoxe or Thesis, that Selfe-Homicide is not so naturally Sinne (1608) — defesa do suicídio que tanto interessou a Borges. A moda prossegue com Sir William Cornwallis (Essayes, or rather, Encomions, prayses of sadnesse: and of the emperour Iulian the Apostata, e Essayes of Certaine Paradoxes, 1616) e Abraham Cowley, autor do poema “Against Fruition” (1647). No século XVIII, ilustram a tradição Jonathan Swift (“Digression in Praise of Digressions”, “A Panegyrical Essay on the Number Three”, “A Modest Defence of Punning”, 1716), Alexander Pope, que defende a má poesia em seu Peri Bathous, Or the Art of Sinking in Poetry (1727), e Samuel Johnson, que exalta as vantagens de se viver em um sótão (1751). No século XIX, William Hazlitt formula uma defesa do pedantismo (1817), Charles Lamb faz o elogio dos limpadores de chaminé (1822), Thomas De Quincey celebra o assassinato como uma das belas artes (1827), Stevenson defende os ociosos (1877) e Oscar Wilde lamenta a decadência da mentira (1891). Em 1901, Chesterton publica The Defendant, reivindicando gêneros menores como as histórias de detetive e a farsa, mas também o nonsense, a gíria, o esqueleto, as pastoras de porcelana e as coisas feias em geral. O bastão é recolhido por George Orwell, que disserta sobre os “bons livros ruins”, defende o pub, a lareira, a xícara de chá e (desafio considerável) a culinária inglesa. Será que ele pensou em Luciano quando elaborou suas reflexões sobre o sapo comum, um de seus ensaios mais líricos? Autor ligado a causas notáveis, que conheceu intimamente a elite inglesa na public school, o governo imperial na Birmânia e os intelectuais socialistas nos debates públicos, ali ele reelabora o paradoxo do homem comum; aquele que, suspeito de imoralidade, encarna a decência; e, desdenhado como ingênuo, sabe identificar as imposturas totalitárias. (*) Alexandre Soares Carneiro é professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem.