“Há muito para ser feito”, diz professor terena sobre educação indígena em MS

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“Estamos conquistando espaços, mas há muito para ser feito”, comenta o professor da etnia terena, Kleber Gomes, de 43 anos, que leciona há 25 anos na Reme (Rede Municipal de Ensino), em Campo Grande. Ele é um dos 50 professores indígenas que estão na ativa em uma escola do ensino público da rede municipal da Capital. Entretanto, antes de virar professor, Kleber também já foi aluno. Com vivência nas aldeias das regiões de Aquidauana e Dourados, o professor terena traz consigo a experiência única de ser indígena urbano e ter convivido com os terena e os guarani-kaiowá. “Embora tenha nascido em Campo Grande, sempre mantive contato com as aldeias desde criança. Por duas vezes, eu estudei em escolas das aldeias. Também passei um ano em 1988 na Aldeia Ipegue, em Aquidauana, e outro ano em 1994 na Aldeia Jaguapiru”. Agora, no papel de professor, Kleber explica que consegue vislumbrar as diferenças entre a escola voltada ao público indígena e a escola voltada ao público não indígena. "A diferença está no valor que as escolas indígenas dão às tradições orais. Isso é trabalhado nas aldeias e nas escolas que estão dentro das aldeias”, destaca. Além de professor no ensino básico, Kleber é mestrando em História na UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), onde tem estudado a história oral dos indígenas urbanos, com o objetivo central de produzir material educativo para escolas e comunidades indígenas. “Entrevistei caciques, crianças, adolescentes e anciãos, para tentar resgatar a tradição e o conhecimento oral. Eles têm muito a compartilhar conosco, coisas que ainda não foram registradas fisicamente”, explica. Segundo ele, dentro de sala de aula, seu objetivo é promover a valorização da história oral das comunidades indígenas nas escolas de Campo Grande. O professor da etnia terena relata que também tem sido convidado a palestrar em outras instituições de ensino, para compartilhar seu conhecimento e experiência com alunos não indígenas. "Tenho recebido outros convites e estamos agendando mais locais para proferir essas palestras. A ideia surgiu principalmente no ano passado, motivada pela minha pesquisa. Essas aulas acabaram sendo um motivador concreto para a realização dessas ações que tenho executado”. Motivado por sua pesquisa de mestrado e pela necessidade de ampliar a representatividade indígena, Kleber relata que está empenhado na produção de um documentário que retrata a vida dos indígenas que vivem em aldeias urbanas. “O objetivo central do meu mestrado é produzir um material que será divulgado em escolas e comunidades indígenas, a fim de apresentar aos indígenas que vivem em contextos urbanos. São em torno de 20 a 22 aldeias urbanas em Campo Grande”, aponta. Educação em números – Em outras cidades de Mato Grosso do Sul, também existem professores indígenas que têm ocupado os espaços do magistério. De acordo com a SED (Secretaria Estadual de Educação), atualmente, Mato Grosso do Sul tem 510 servidores indígenas, entre professores e coordenadores que atuam na Rede Estadual de Ensino. Os maiores quantitativos observados estão nos municípios de Aquidauana e Miranda. Juntos, somente os dois municípios contam com mais de 100 profissionais atuantes na rede estadual, de acordo com a SED. Dados do Censo Demográfico realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2010 mostram que a região Centro-Oeste do Brasil é a terceira com maior concentração de indígenas. Entre os estados dessa região, Mato Grosso do Sul se destaca, abrigando 56% da população indígena. Essa posição só é superada pelas regiões Norte e Nordeste do país. Segundo os registros do mesmo Censo do IBGE, a população brasileira totaliza 190.755.799 milhões de pessoas, das quais 817.963 mil são indígenas, representando 305 diferentes etnias. No país, foram registradas 274 línguas indígenas. Em Mato Grosso do Sul, de acordo com dados da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), a população indígena soma 80.459 habitantes e está presente em 29 municípios. Essas comunidades são representadas por oito etnias distintas: guarani, kaiowá, terena, kadiwéu, kinikinau, atikun, ofaié e guató. Cada uma dessas etnias mantém sua língua materna como forma de comunicação, sendo elas: guarani, terena, kadiwéu, guató, ofaié e kinikinau. Diante desse contexto plural, o Estado lida com o desafio de construir uma política de valorização da educação básica e específica para os povos originários. Nesse cenário, o processo de formação do educador torna-se essencial para garantir uma escola que respeite as particularidades culturais de cada etnia indígena de Mato Grosso do Sul. Formação – A formação de professores indígenas tem desempenhado um papel fundamental na promoção da educação escolar indígena e no fortalecimento da cultura e identidade dos povos originários de Mato Grosso do Sul. Teodora de Souza, da etnia guarani, é professora de educação indígena e mestre em Educação. Ela reside na Aldeia Jaguapiru, no município de Dourados, a 251 km da Capital, e atua como professora em uma das escolas municipais indígenas, a Escola Indígena Tengatuí Marangatu. Segundo ela, sua paixão pela educação escolar indígena surgiu em 1992, durante sua graduação em Pedagogia no Ceud (Centro Universitário de Dourados), antiga extensão da UFMS. Foi nesse período que ela se aprofundou nas leis que asseguram os direitos diferenciados dos povos indígenas. Teodora e outros educadores, voluntários e contratados, uniram-se a lideranças e membros da sociedade civil para discutir e lutar pela implementação de políticas públicas que garantam esses direitos. “Criamos a Organização dos Professores Guarani Kaiowá, que promoveu encontros e reuniões para discutir essas questões e pedir a criação de cursos de formação para os professores indígenas. Queríamos construir políticas públicas, junto às instituições municipais e estaduais, conforme assegurava a Legislação Brasileira”, explica. Segundo a professora da etnia guarani, a presença dos professores indígenas nas escolas é essencial para fortalecer as identidades e promover uma educação mais justa e plural. "Afinal, somos vários povos, com diferenças culturais, línguas e cosmovisões distintas. Temos nossa arte e nossa história, que precisam ser valorizadas nas escolas, tanto no ensino fundamental e médio quanto nas universidades", ressaltou Teodora. A discussão sobre a educação escolar indígena como um direito específico e intercultural ganhou força a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) de 1996. “Antes disso, a educação indígena era de responsabilidade da Funai, mas hoje é atribuição do MEC (Ministério da Educação)”, explica Teodora. Após mais de uma década de luta, Teodora aponta que o primeiro curso de magistério em nível médio para o povo guarani kaiowá de Mato Grosso do Sul foi criado em 1999, na região do Cone Sul. "Conseguimos esse curso graças ao apoio do secretário de Educação da época, que abraçou nossa causa. O curso existe até hoje e a demanda continua crescendo”. De acordo com Teodora, a presença de professores indígenas nas salas de aula faz toda a diferença. Anteriormente, a educação escolar indígena contava com profissionais não indígenas, mas hoje a realidade é outra. "Agora, temos professores indígenas que são da própria cultura e do próprio povo, o que faz uma grande diferença na hora de alfabetizar e ensinar", explicou a professora. Entretanto, a busca por espaço não parou no ensino básico. Teodora apontou que as reivindicações pela formação em nível superior também foram feitas. “Depois de conseguirmos aprovar o curso de Magistério, nós também lutamos para ter a formação em nível superior, porque era uma demanda nas comunidades indígenas oferecer o ensino em níveis finais”. A partir de 2006, com a colaboração da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), foi possível estabelecer um curso de formação em nível superior para professores indígenas. “O objetivo era atender à crescente demanda por profissionais qualificados nas comunidades indígenas. A UFGD construiu o prédio da Faculdade Intercultural Indígena e desde então tem realizado vestibulares anuais para a admissão neste curso”, aponta Teodora. Desde então, as universidades do Estado têm se empenhado em oferecer cursos de licenciatura e garantir que os acadêmicos indígenas concluam seus estudos. Na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), no ano de 2022, um total de 60 estudantes indígenas concluíram seus cursos de licenciatura, tanto na Cidade Universitária, em Campo Grande, quanto nos campus de Aquidauana e Ponta Porã. A UEMS também tem se destacado na formação de acadêmicos indígenas. Em 2022, um total de 34 estudantes concluíram seus cursos de licenciatura. Já na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), mais 53 acadêmicos indígenas concluíram seus cursos de licenciatura em 2022. Conquistas e desafios – Foi a partir da luta de pessoas como Teodora que indígenas de Mato Grosso do Sul puderam avançar na conquista pelos seus direitos educacionais. Em 2002, foi criada, pelo Decreto Estadual n.º 10.734, a categoria de Escola Indígena, no âmbito da educação básica no Sistema de Ensino de Mato Grosso do Sul. A Escola Indígena terá normas jurídicas próprias fundamentadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais e nas normas do Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul, proporcionando a educação escolar intercultural e bilíngue, a valorização plena das culturas dos povos indígenas, assim como afirmação de sua diversidade étnica”, Art. 2º do decreto estadual n.º 10.734, de 2002. Já a primeira escola indígena da Rede Estadual de Ensino foi criada em 2006, por solicitação das comunidades indígenas. Atualmente, MS tem 19 escolas estaduais indígenas e 7 escolas que possuem salas de extensão indígenas. Entretanto, Teodora e Kleber apontam que os povos originários ainda possuem muitos desafios pela frente. Para Teodora, além da crescente demanda por escolas, o desafio ainda é na formação de professores em nível médio e superior. “Estamos lutando para ter também um curso de Pedagogia Intercultural, para que possamos continuar formando professores para os anos iniciais em nível superior”. Já Kleber aponta que é preciso ampliar a política de ações afirmativas em concursos públicos e nas universidades. “Historicamente, fomos marginalizados e isso se reflete até hoje. As ações afirmativas, como as cotas, têm contribuído significativamente para que os indígenas cheguem aos ambientes acadêmicos, mas ainda há muito a ser feito”.

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