No cenário global, o Brasil ocupa papel relevante na economia, na política, na ciência, na cultura, no esporte e em outros tantos e variados campos de manifestação da atividade humana. Não obstante, nesse mesmo Brasil, enormes contingentes populacionais encontram-se na miséria e passam fome. A persistência dessas privações a direitos humanos básicos se deve menos à escassez absoluta ou relativa de recursos e muito mais ao elevado grau de desigualdade da sua distribuição. O padrão distributivo brasileiro é ímpar no rol das sociedades com níveis semelhantes de desenvolvimento. Trata-se de um dos mais elevados graus de desigualdade de renda do mundo. A questão da produção e autossuficiência alimentar é, ainda hoje, preocupação de muitos países. No entanto, desde a publicação da obra Poverty and Famines, de Amartya Sen, no início da década de 1980, está bem estabelecido que a fome pode existir mesmo se os suprimentos de alimentos forem adequados em nível nacional e internacional e os mercados estiverem funcionando bem. Não pode haver dúvida de que há milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil e que isso não se deve à falta de alimentos no País, ou à inexistência de oferta de alimentos a preços razoáveis, ou a problemas de logística na sua distribuição, mas sim ao fato de essas pessoas não terem acesso a alimentos suficientes, e isso se relaciona, em geral, com o fato de elas não terem renda suficiente para comprar alimentos. A abordagem do direito (entitlement), proposta em Poverty and Famines, concentra-se na capacidade de as pessoas terem acesso a alimentos de boa qualidade através dos meios legais disponíveis na sociedade, incluindo a compra, a produção para o próprio consumo, direitos perante o Estado e outros métodos de aquisição de alimentos. Os yanomamis não estão morrendo de desnutrição porque falta comida no Brasil, mas sim porque eles não têm acesso aos alimentos produzidos no País – pois nem fazem parte da economia mercantil que condiciona a distribuição desses alimentos -, e os garimpeiros ilegais, invasores, destruíram suas fontes originais de alimentos e até mesmo de água potável. Nas sociedades mercantis, o acesso a bens e serviços, isto é, o acesso a quase tudo considerado fonte de bem-estar, está intimamente associado ao poder aquisitivo do indivíduo. Em se tratando do Brasil, o Estado garante acesso, mesmo que seja, muitas vezes, de qualidade precária, a serviços básicos como saúde e educação, mas o acesso à alimentação depende, essencialmente, da capacidade de os indivíduos pagarem por ela. O critério de avaliação de uma economia deve ser o bem-estar das pessoas. Embora a renda esteja longe de ser uma medida perfeita do bem-estar, há uma relação razoavelmente estreita entre bem-estar e renda per capita e a análise da distribuição da renda é uma maneira de avaliar uma economia. A pobreza e as restrições de acesso a alimentos desaparecem com renda elevada e bem distribuída. O início dos anos 2010 era de otimismo com relação às tendências da desigualdade de renda no País. Afinal, o período 2003-2014 foi o melhor já vivido pelo País em termos distributivos e de redução da pobreza. Porém, ao invés de outra década dourada, o que o Brasil viveu foi a perda de controle sobre as contas públicas, a pior recessão desde a redemocratização, a destituição de uma presidente da República, as duas eleições mais polarizadas da nossa história, a recuperação econômica mais lenta que já experimentamos e a pandemia de covid-19, que, além das perdas incomensuráveis de vidas, afetou fortemente a já debilitada economia brasileira. Deve ficar claro que a situação socioeconômica do País já era muito frágil antes dessa nova crise: um quarto de toda a redução da pobreza conquistada de 2003 a 2014 foi perdida de 2014 a 2017, permanecendo no novo patamar até 2019; a renda domiciliar per capita média encontrava-se, em 2019, praticamente no mesmo patamar observado em 2014; e a desigualdade da distribuição da renda domiciliar per capita aumentou sobremaneira no período 2014-2019. Mas, também, não pode haver dúvida de que a desestruturação de políticas públicas de combate à fome e à insegurança alimentar e a clara ausência de combate efetivo à pandemia, por parte do último governo, contribuíram sobremaneira para a preocupante e desalentadora situação que estamos vivendo. Neste cenário de crises sanitária e econômica, de muita incerteza, com alta taxa de desemprego e pressão inflacionária, comer todos os dias passou a ser um desafio ainda maior para milhões de brasileiros e isso se reflete nos indicadores de insegurança alimentar para o País. A avaliação do grau de insegurança alimentar no Brasil tem sido realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). O domicílio é classificado em uma de quatro categorias (segurança alimentar, insegurança leve, insegurança moderada e insegurança grave) conforme o número de respostas “sim” às 14 perguntas que compõem a escala e a presença ou não de morador com menos de 18 anos de idade no domicílio. A primeira pergunta, por exemplo, é: “Nos últimos três meses, os moradores desse domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar mais comida?”. A última é: “Nos últimos três meses, alguma vez, algum morador com menos de 18 anos de idade fez apenas uma refeição ao dia ou ficou sem comer por um dia inteiro porque não havia dinheiro para comprar comida?”. O exame do conjunto das 14 perguntas deixa claro que a Ebia avalia, essencialmente, a segurança alimentar no sentido de “acesso aos alimentos”. A menção, repetida, à falta de “dinheiro para comprar comida” se justifica porque no Brasil o acesso aos alimentos se dá, geralmente, por meio da compra. De acordo com dados do IBGE, acompanhando a redução da pobreza, entre 2004 e 2013, a proporção da população brasileira em situação de insegurança alimentar grave, diretamente associada com a fome, caiu de 8,2% para 3,2%. De 2013 a 2018, com a piora das condições econômicas, a insegurança alimentar grave aumentou para 5%, mas existem evidências de que essa cifra já esteja muito maior, como mostra o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, publicado em 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Da renda total dos domicílios a maior parcela (cerca de três quartos) é a proveniente do rendimento do trabalho, sendo essa a principal e, frequentemente, a única fonte de renda dos indivíduos e das famílias. Assim, é claro que o comportamento do rendimento do trabalho, à luz das transformações ocorridas no mercado de trabalho, seja o principal determinante da dinâmica da distribuição da renda e, por consequência, da dinâmica da pobreza e da insegurança alimentar no País. Neste contexto, uma economia que forneça empregos para a população economicamente ativa e um governo que promova o crescimento econômico com redução da desigualdade são, hoje, a principal política pública de combate à insegurança alimentar no Brasil. Obviamente, a curto prazo são indispensáveis as transferências de renda e a distribuição emergencial de alimentos. (*) Josimar Gonçalves de Jesus é pós-doutorando da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP.