O tema da anistia voltou ao centro dos debates políticos no Brasil. Isso ocorreu por duas razões: a recomposição da Comissão de Anistia mediante Portaria do ministro Silvio de Almeida publicada em 17 de janeiro; as demandas, formuladas por setores expressivos da sociedade civil, pela negação da anistia a crimes cometidos por agentes públicos nos últimos anos, resumidas na expressão “sem anistia!”. Há, nessas situações, dois sentidos diferentes do termo anistia. Precisamos definir com atenção esses significados. O conceito de anistia sofre transformações não apenas em seu uso, mas também como resultado de disputas interpretativas. O campo semântico da anistia no Brasil nunca foi monolítico. No primeiro caso, trata-se da reconstrução do Estado Democrático de Direito, tão abalado pelas práticas desconstituintes dos últimos anos, especialmente em relação à reparação devida a vítimas do regime militar brasileiro3. A Comissão de Anistia é órgão de Estado, voltado ao cumprimento de uma diretriz constitucional. O art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias concede anistia aos que “foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”. Essa anistia tem o claro sentido de reparação e reconhecimento. Reparação devida às vítimas do regime, que foram atingidas de diversas formas: desaparecidas, assassinadas, torturadas, detidas de modo arbitrária, enviadas ao exílio, demitidas, expulsas de universidades, perseguidas por força de suas convicções políticas. Reconhecimento da extrema iniquidade e do caráter autoritário do regime militar (responsável pela prática de crimes contra a humanidade ao longo de 21 anos de repressão) e da inadiável necessidade de adotar políticas destinadas a evitar a repetição ou o retorno do regime ditatorial. No segundo caso, a exortação “sem anistia!” se dirige contra um uso específico do termo anistia. Quando uma parcela importante da sociedade brasileira se coloca contra todo e qualquer tipo de conciliação ou negociação em torno de possíveis punições a crimes graves (incluindo o genocídio), o que se procura evitar é o sentido da anistia como perdão ou como esquecimento. Foi exatamente esse o uso feito pelo governo militar – e seus apoiadores civis – no final da ditadura. Para compreender essa distorção criada pelo regime, é fundamental lembrar elementos da história da resistência no Brasil – e da disputa em torno do termo anistia. O que se constata, pela análise das fontes relacionadas à resistência ao regime instaurado a partir de abril de 1964, é a conexão entre duas demandas: concessão de anistia e convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Em meados da década de 1970, ambas as reivindicações começam a ganhar força, ainda que existam manifestações anteriores. Em 1975 foi fundado o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini, esposa de um general legalista que se opôs ao golpe de 1964 e foi punido pelo regime. O movimento expandiu-se rapidamente pelo país, com a mobilização de muitos setores da sociedade – familiares de vítimas, igrejas, sindicatos, representação estudantil e vários outros. Em 1978 foi criado o Comitê Brasileiro pela Anistia. Houve então uma campanha nacional de ampla repercussão. Como dito por Bernardo Kucinski, os objetivos do movimento “vão além da anistia em seu sentido restrito e compreendem a busca e a descoberta do que aconteceu com os desaparecidos, a denúncia das condições de vida dos presos políticos, pressões pela soltura de brasileiros presos por outros regimes repressivos na América Latina”. Está claro, portanto, que aquele movimento pela anistia foi, antes de tudo, um movimento contra a ditadura e pela redemocratização do país (é importante frisar que esses atores sociais tinham bem viva a memória do período democrático compreendido entre 1945 e 1964). O termo anistia estava associado ao retorno da democracia, à capacidade do Brasil de ser uma sociedade solidária e livre. Nada havia de perdão, conciliação ou esquecimento naquela luta.Porém, no momento de transformar a bandeira pela anistia em texto legal, operou-se a transformação de sentido. Em 1979, o governo militar apresentou ao Congresso Nacional um projeto de anistia visando a isentar agentes do regime que cometeram violações aos direitos humanos. O projeto foi aprovado por uma margem estreita de votos – e, com isso, a anistia serviu como instrumento de impunidade e esquecimento (Lei nº 6.683/79). Foi uma espécie de anistia extorquida, o uso parasitário de um conceito que provinha da sociedade civil com muita força e capacidade de mobilização. E como bem assinala Lucas Pedretti, essa anistia veio marcada pela sombra de uma ameaça às vezes velada, às vezes explícita: os militares diziam que a passagem para a democracia deveria ocorrer “sem revanchismo”. É fundamental notar, contudo, que a história não terminou ali. Foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República. Ela foi produzida por uma Assembleia Nacional Constituinte eleita de modo democrático, que atuou em consonância com amplos setores da sociedade civil. E, evidentemente, sua vigência significa uma ruptura com o ordenamento jurídico preexistente, que inclui a Lei de Anistia de 1979. Isso foi além da simples substituição de um documento por outro; operou-se uma transformação na base do direito e da política. Enfim, houve um processo que exigiu a redefinição de todo o ordenamento. Como vimos, há uma origem “democratizante” na luta pela anistia. Ela não foi reivindicada como uma “anistia-esquecimento”. Ela foi veiculada sob o signo da redemocratização. E é esse sentido que veio se concretizar em 1988, numa perspectiva histórica de lutas por reconhecimento, democratização e inclusão. Com isso fica claro o equívoco da interpretação concedida pelo Supremo Tribunal Federal ao instituto da anistia. No julgamento da ADPF 153, o STF permaneceu preso à lógica da anistia extorquida pelos militares em 1979 – como se a ruptura de 1988 não houvesse existido . A cada dia que passa, mais anacrônica soa a decisão do STF (especialmente após reiteradas manifestações da Corte Interamericana dos Direitos Humanos no sentido da impossibilidade de concessão de anistia em crimes contra a humanidade). Em 2023, num momento de reconstrução da democracia, a Comissão de Anistia tem o dever de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a reparação e o reconhecimento. É esse o sentido constitucional do instituto da anistia – o único possível no contexto de uma ordem jurídica democrática. (*) Cristiano Paixão é professor da Faculdade de Direito da UNB.